terça-feira, 27 de novembro de 2012

Sobre animais e amizade



Eu fecho os dedos e viro uma esquerda.
Duas direitas.
E outra, de baixo pra cima no queixo.
Depois dou com o joelho na região abdominal e sem sucesso pego uma faca e enterro no músculo da perna. Giro.
Sento no chão, suor na testa, olho inchado de choro grosso, ossos do punho quebrados, mãos cortadas, sangue fugindo por tudo que é buraco. 

E ela nada...linda como um boneco de cera. 

Como uma estátua, daquelas viçosas, que se eternizam nos museus, na casa de colecionadores milionários. Aquele busto brilhoso, músculo marcado e beleza de dar medo, mas que por dentro é só concreto.
Ela só  faz me olhar com aquela expressiva cara de boneca inflável, com boca aberta e tudo, mas que por dentro, é só ar.

E eu chorando a dor dos punhos e peito, tentando expelir aquele cansaço agudo, pontiagudo no meu coração, vi que era inútil gastar minha saliva, força e sangue com uma pessoa que não se dói, não sangra, não dilata amor, nem graça, nem nada.
Que não tem cérebro  e coração, nem pra entender porque é que apanha.

E eu chorei de novo,  porque eu vi ruir toda a construção que durante anos, havia arquitetado nela.
Porque vi desbotar a vida colorida que a gente pintou. Vi secar o jardim bonito que a gente plantou.

De repente eu sinto minha cachorrinha, a Hanna, lamber meu dedão do pé enquanto eu acordo suada daquele sonho terrível. 
Agradeci ao céus, por tudo não ter passado de um pesadelo e também por, pelo menos dessa vez, eu ter escolhido a cachorra certa pra ser  minha amiga.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Armário





Estava aqui com meus botões emperrados, pensando se existe um jeitinho bom, uma fórmula, de como decidir pelo melhor, pelo que vai te dar algum sucesso nessa vida.
Falam de pensar positivo, de fé, de aqui se faz aqui se paga, tem até um livro aí que fala do segredo, mas pra mim isso tudo é muito abstrato...
E abstração, infelizmente, nunca foi eficiente no meu mundo.
Essa paranóia toda rolou, quando enfiei meu pé fundo na areia fofa daquela praia.
Foi quase como uma constatação, resultado de anos de pesquisa torta.
Era a isso que me referia.
Vida real, cotidiano, possibilidade, coisa que acontece, que dá pra tatear.
Era meu pé que estava ali enfiado naquela areia branca.
E aquele conjunto era bom. Me dava prazer.
Eu vi que não queria nenhum outro lugar nesse mundão de praias paradisíacas, paisagens coloridas e luxos surreais, que não fosse aquele chão onde meu pé estava plantado.
Nenhum camarote em Ibiza com caras sarados.
Nenhuma fazendinha silenciosa com vacas pastando.
Era só ali, o meu lugar.
Na minha mão direita tinha um copo plástico mastigado, com cerveja dentro.
Ele suava, brotava um monte de gotinhas que corriam loucas pela superfície e saíam do copo pra pousar justo na minha perna quente do sol.
E era um arrepio gostoso, que trazia aquela mesma sensação, que eu experimentei com os pés na areia.
Sensação viva de estar no centro do meu desejo. Era eu inteirinha ali naquela tarde de verão.
Foi aí que eu lembrei  das vezes em que amarguei vontades reprimidas, que tatuei rosto feliz na cara, que botei salto alto com dor, roupa apertada e quente, discursei texto falso e interpretei no estilo novela mexicana. Lembrei  do dia  que coçou o pé quando tocou minha música e eu não dancei, das chances que perdi, em nome do que é socialmente bonito, de ser feliz.
Defini então a minha fórmula.
Naquela tarde eu entendi que bom mesmo é me limitar pela sensatez do medo que freia, me impulsionar pelo desejo que atiça e ir adiante com a coragem que abre precedente. Respeitar meu paladar, minha história e o apelo doce de quem eu amo. Deus, nessa história toda e por motivos logicamente hierárquicos, é quem determina a porção e a hora exata que cada um desses ingredientes entra na mistura.
Eu descobri, por fim, que o certo é sempre clichê.
Se quer beijar, beije. Amar, ame. Viajar pro Iraque, comer quindim tendo colesterol, chorar na frente da sua mulher, mudar de curso no último ano de formação, virar hippie, sentir medo.
Enfim, se assuma. Eu só fui feliz realmente, quando saí do armário.



quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Era eu.





Era o arrepio da minha pele, o gosto da minha fruta, beijando o meu beijo.
Era o meu riso largo, meu ciúme bobo, cheinho de medo. 
Era minha mão, naquele ponto G na minha nuca.

Minha mordida dolorida, minha força sensivelmente bruta.
Era todo meu. Meu jeito, minha fala, meu céu de brigadeiro. Dor depois. Paz primeiro.
Era minha entrega. Cor vermelha de vergonha.
Era minha rima, em par, em paz, minha sina.
Era a continuação da frase que era minha. Meu início e meio assim sem fim.

A melhor parte de mim, naquilo que eu não sabia ser eu.
Era eu, só que corajoso.
Era eu sem meias palavras, sem nobreza clara.

Era eu andando sozinho, vagando pelo mundo sem sentir fome.
Eu, menos quente. Mais suado. Mais frio, forte e vago que só. Eu.

Era meu lado amargo, sem jeito. Mas era eu inteiro, quase um reflexo no espelho.
E era bom estar comigo, era bom rir, amar e ser meu amigo. Era bom o amor-próprio, que como qualquer autoamor, me elevava a estima.

Era bom me saciar, porque eu sabia exatamente quando, o que e onde eu queria.
Ele era assim, uma versão melhorada de mim. 
Meu eu homem. 
Meu homem.

Kamila Valente

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Vista pro mar


Decidi andar olhando pro alto.
Descobri construções mais altas e flores em algumas janelas.
Descobri o céu pintado num azul de se perder.
Meus olhos viam cores, brilho, ainda eram sensíveis mesmo depois de tanta areia machucando.
Descobri que tinha fôlego, juventude e músculos para chegar.
Não além, mas perto.

Descobri que reconstruir, é muito mais fácil que construir.
Não tem o mesmo gosto de novidade, mas os cacos estão ali, é só juntar tudo e montar de novo.

O trabalho cansa menos.

Dentre tantas descobertas, teve aquela clichê de que nunca é tarde pra mudar as perspectivas, o jeito da gente olhar pro mundo, o jeito de acreditar nas pessoas, de constatar que cerveja é melhor que champanhe e que salto alto só é bom se vier acompanhado de medalha de ouro nas olimpíadas.
Evoluir ainda funciona fora da teoria e só quem se descobre todo dia é dono da paz que só o entendimento das coisas traz.

De repente a ventania virou brisa, a bagagem ficou leve e os cinco sentidos que haviam ido, voltaram.
Agora o gosto é bom. O cheiro é doce. O som agrada. O toque é macio.
E a vista?

Bom, essa é de frente pro mar.

Kamila Valente





terça-feira, 16 de outubro de 2012

Stand By




Dá pra descobrir arte sem ser triste.
Tem beleza a beleza por si só.
É só se aceitar.
Deixar o sal de Nando Reis, vir doce para os novos lábios.
E sem se preocupar com o All Star azul, se apaixonar pelo que se tem.

Falei outra vez que a vida é isso mesmo, vai da gente, sonhar ou atuar. Minha tática era mesmo ficar estática, mas quando entendi que tava protagonizando as melhores doçuras, e tudo sem ensaio, eu achei até bom o meu caminho.
É que ele só é, quando eu trilho.
É só andando que o vento bate e eu consigo sentir o cheiro que exala, a língua fica seca e eu provo o gosto que tem.

E nessa minha nova estrada, muitas plantinhas nasceram, sementes que eu até tinha esquecido enterradas, frutificaram.
No meio do caminho eu peguei uma puta chuva e subiu aquele cheiro de terra molhada, bom que só.
Depois o sol saiu, me morenou e eu gostei também do verão que tava fazendo.
Parecia o meu primeiro verão, com cheiro de  protetor e topless inocente de criança.
Gostei da nova vizinhança que ouvia sertanejo, todo, todo dia.
Gostei do novo trabalho que me pirou com aquele alfabeto aeronáutico.
Gostei das novas amizades, e por gostar, tudo e todos me gostavam também.
E acho que de repente é isso que manda, transpirar positividade. Ela bate lá e volta pra cá.

Muita indo, mesma intensidade e sentido contrário, muita voltando.

Gostei, por fim, de ter que voltar. Demorou, mas eu entendi que era uma segunda chance, de fazer tudo diferente. Não necessariamente melhor, mas, de outro jeito.
É como liberar um ufa! ao ver que as coisas não estão mais como você as deixou.
Tem quem veja no voltar, um retrocesso, mas eu escolhi não olhar por essas lentes.

Tô montando um castelinho torto, humilde, pedrinha por pedrinha, mas que me cabe dentro.
Vez ou outra alguém derruba metade do meu trabalho suado e assim me arranca duas ou três lágrimas, mas o número de gente que coloca a mão na massa comigo, tem aumentado um tanto.
Agora a casa tem meu tamanho, meu jeito, a cor da parede que eu mesma pintei e eu coloco nela, quem eu quero e fica quem quer. É tudo meu. O caminho, a casa, a vida, os pincéis.

Parece meio autoajuda, mas é não.
É só pra mostrar o quanto a gente é bobo, às vezes, por ficar em stand by.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Carta pra Deus.



Oi, Deus.

Tô vindo aqui meio desesperada e morrendo de vergonha de te dar essa notícia, mas eu tenho o costume de nessa vida, fazer esse tipo de serviço sujo mesmo, já que tu me deste voz e uma cara dura boa de apanhar.
Então aí vai:

Tua criação  meio que deu muito errado.

To vindo lá daquele Éden fajuto que eu vivo, pra te avisar que por aqueles lados tem gente que mata por dinheiro,  que rouba de quem não tem, que vende o corpo pra viver e a alma pro diabo.

Eu vi gente que faz o outro de degrau. 
Vi gente que faz o outro de privada.   
Gente que machuca até sangrar, que rouba o riso, sem culpa.
Tem gente mentirosa que passa batom na boca pra fingir que tá colorindo, mas por dentro, é cor só.
Tem quem vomita aos berros sobre nobreza  mas é tão podre quanto o cheiro do próprio vômito.

Por lá tem gente velha que nunca amou. 
Tinha até um homem que nunca chorou, porque era homem e uma mulher que nunca teve orgasmo porque disseram a ela que Eva fez a cagada toda da maçã e como castigo, nós mulheres, estávamos fadadas ao desprazer eterno.
O tempo passou, eu cresci,  mas as coisas não mudaram Deus. 
Agora, lá tem gente com curso de especialização em maldade.
Tipo canibal mesmo, que começa a refeição pelo coração.

Então,  já que eu fiz o favor de te avisar como andam as coisas lá embaixo, queria te pedir, assim, como forma de agradecimento, que me deixasse ficar.
Não quero voltar não. Tenho me doído naquele lugar. Trouxe até meu coração numa sacolinha pra ver se tu podes consertar, fazer bater e dilatar qualquer tipo de amor outra vez.

Ou me dá um novo, igual ao teu.

Sei que não tenho merecido, afinal, eu faço parte desse todo que citei aqui. 
Já furei fila, já menti, não devolvi o troco a mais, já entristeci e já motivei choro. 

Mas tu me conheces desde que eu era apenas um sonho de adolescente pra minha mãe. 
Tu sabes que eu vim, pra ser paz.

Então me deixa ficar por aqui, porque lá, não dá.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Vida em trânsito.



As vezes é preciso estacionar.

Eu parei, mas não do jeito que se para num engarrafamento, em meio ao barulho, buzinas, fumaça cinza e palavrões.
Eu tive que sair da fila, me recolher à espera num canto qualquer, sem movimento, porque dentro de mim já tinha bagunça suficiente.

E metaforizando ainda, não vale aqui tomar um atalho, um outro caminho. Tem certas coisas, que vão grudadas com a gente pra todo lado, maculando a caminhada. A gente sai de uma via estressantemente congestionada, pra pegar uma estrada esburacada e incerta. 
Então me parece que o mais sensato mesmo, é parar no acostamento da vida e ficar ali, esperando passar.

É melhor o silêncio, sair da linha, pra se escutar por dentro, do que insistir num caminho barulhento e cheio daquela espera inquieta, que pode demorar muito pra ir embora.
Já que não dá pra voltar atrás, que não é seguro tomar outro caminho e que pra frente o negócio não anda, o melhor mesmo é se afastar do olho da confusão.
É arranjar um lugar que dê pra tomar uma água, uma posição que dê pra dormir um sono, um rádio pra escutar uma música, porque só assim o tempo distrai e a poeira assenta, até que carreata segue e o coração desocupa.
Porque o que a gente não alimenta, emagrece. O que não se rega, morre.

Não precisa se juntar à multidão insana gritando, buzinando, xingando a mãe do outro, não. Quem se debate muito, se machuca muito.

E pode até doer estagnar, mas atropelar dói muito mais.

Kamila Valente