quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Deja'vu


Daqui do meu lugar eu vejo a cidade acordando cansada.
As crianças brincam com a fumacinha que sai da boca.
Fingem fumar.
Os adultos correm contra o relógio à favor do atraso.
Fingem viver.
As mulheres carregam bolsas, filhos e a desventura de mais um dia com dois expedientes.
Os homens mastigam uma bobagem qualquer pra enganar o estômago.
Devoram uma certeza qualquer pra enganar o coração.
Todos se arrastam, todos cochilam de pé. Todos apenas sobrevivem.
Os vidros fechados nos sinais. Os sinais fechados pro tumulto.
Os olhos fechados pra tudo.
A cabeça recostada no vidro do ônibus, a mochila pesada nas costas.
É só mais um dia vadio.
O telefone não toca, a música não toca, todos te tocam, te espremem, mas não tiram virtude alguma.
Não te percebem.
É só mais um dia vazio.
Na contagem de um preso, um a menos.
Na contagem de um idoso, um a mais.
Na minha contagem, apenas um.
Mais um dos mesmos.

Kamila V.

( Post do antigo blog: http://kamilavalente.blogspot.com/2008/09/deja-vu.html )

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Essência.


Antes de começar, quero deixar bem claro que não gosto de discutir sobre ideais, crenças ou qualquer coisa que mexa fundo com seus conceitos, ainda que sejam eles tão profundos quanto um pires.
Aqui eu apenas exponho minha opinião sobre o que tenho vontade, e como já disse em textos anteriores, minhas verdades podem não significar quase nada pra você.

Vou parar de me explicar.

Dia desses no facebook, eu acessei o perfil de um informativo que trata sobre os eventos que ocorrem nas igrejas evangélicas em Florianópolis. Achei muito válida a idéia de integração através da comunicação de shows, palestras e afins.
Porque por essas bandas de cá, o povo não se mistura mesmo. Uns porque não cortam o cabelo, outros porque pedem dinheiro, outros porque escondem dinheiro na bíblia...enfim, todos se esquecem de olhar pro foco, que neste caso, seria o mesmo Deus.
Entre os anúncios, teve um que me chamou muita atenção. Um apenas.
Ali dizia que tratava-se de uma " balada gospel" e que as mulheres tinham "entrada Free" até meia-noite.

Vamos lá:
Em primeiro lugar, o nome "balada" me dói os ouvidos.
Em segundo, confesso que tenho ido pouco a igreja, mas não o suficiente para não entender mais nada.
A idéia de mulheres não pagarem na "balada", até onde eu sei, é pra encher o lugar de mulher e consequentemente de homem. E o resto todo mundo, cristão ou não, já sabe.
Por favor, eu odeio moralismos, a questão a que me refiro, é bem outra.
Eu não entendo essa revolução tola que insistem em promover
Tudo tem que ser com impacto!
Nós vamos impactar o mundo!
Nós somos a geração escolhida para causar!

Quanta bobagem...
Chega de querer impactar, chega desse peso de geração escolhida.
A pessoa que decide hoje ir a uma igreja, deve necessariamente passar por um processo aceleradamente louco de espiritualização para poder digerir tanta responsabilidade.
O melhor de Deus não está por vir...está tudo aqui.
O melhor é isso mesmo, a vida, o ar, o mar.

Eu, sinceramente, não sei como impactar o mundo.
Tudo que sei fazer, é escrever uma palavrinha ou outra, cantarolar uma música gostosa, ceder o lugar no ônibus, dar bom dia, dizer obrigada, orar baixinho no meu quarto.

Eu, sinceramente,não quero impactar o mundo.
Não quero perder a essência por qualquer variável.
A conteporaneidade me incomoda, principalmente quando se trata de uma coisa que nunca mudou, nem nunca mudará.
Deus.
Kamila V.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Olhos de Capitú.



Ela acordou e pôs o pé no chão gelado.
Os chinelos não acordaram do lado da cama e as meias mais uma vez se perderam entre os edredons.
O jeito era ir até o tapete na ponta dos pés.
O tapete fica na frente dele e ela não quer se olhar.
Ela nunca gostou de espelhos, e quando menor, preferia os 7 anos de azar à deixar um inteiro.
Quando tormentava forte, ela usava a velha desculpa de que atraíam raios, só para cobrí-los com panos.
Evitava o quanto podia passar em frente.
Passava o lápis no olho e colocava os brincos com precisão, sem se enxergar.
Adaptou sua vida pra não precisar de um sequer.
Mas o que temia tanto? Que medo era esse que atrapalhava tanto, causava tanto e resultava em nada?
Fingia pra todos não ter respostas, ainda que as soubesse de cor.
Na ocasião das perguntas, o silêncio consentia, porque a idéia de olhar no olho assustava.
O fato de olhar pra realidade enquadrada que ela teria se tornado, a incomodava, pinicava a pele.
Então ela vivia de fugas, olhares baixos, mãos no rosto.
Sem se ver, sem tentar refletir ou aparecer, sem olhar nos próprios olhos.

Ela viveu a vida inteira assim, sem se saber.
Sem ver o quão maravilhosa mulher tinha crescido naquele corpo e o quanto aquele batom vermelho lhe caía bem.
Sem admirar aqueles que reduziam os de Capitu à insignificância...

Seguia ela, pagando pra não ver.