sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A gente não teve escolha.





As coisas poderiam ter sido diferentes.
A gente poderia não ter tomado a pílula vermelha.
Poderia ter optado por um fardo mais leve ou por não carregar bagagem nenhuma e pagar pro maleiro levar.
A gente poderia ter dinheiro.  
A gente poderia ser o maleiro.
Poderia ter outros amigos, trilhar um outro caminho, com flores ou ainda com cacos de vidro.
Poderia ter filhos. 
Poderia falar cinco línguas e ganhar o Nobel, posar nua pra revista masculina.
Poderia ter sofrido um acidente numa BR qualquer por excesso de álcool.
Poderia cantar no coro da igreja.
Poderia ter fumado pouco ou nenhum cigarro. 
Poderia ter morrido de câncer ou atingido por aquele carro cheio de gente alcoolizada numa BR qualquer.

Poderia. Poderia.

Todo mundo aponta aquele cara que só faz merda, sem se importar em como é relativo esse conceito de cagar com a vida.  
E com relação a isso eu preciso contar uma novidade: Pro tal cara, o tipo de sucesso que vocês julgam ideal,  não atrai.
A gente não teve outra escolha. A gente tem o que a gente decidiu.
O que a gente fez e do jeito que quis fazer.

Eu atirei naquele cara, olhando nos olhos dele, porque ele ia me matar.
Eu arrumei minhas malas e fui pro Japão porque esse continente era vazio demais pra mim.
Eu fiquei até mais tarde na cama e perdi o dia, pelo sono.
Eu usei palavras erradas sem saber que eram certas, pois afinal, mandaram a pessoa errada embora.
Cheguei na hora errada e vi o que precisava ver mas não queria. Mas uma vez, a escolha errada que deu certo.
As escolhas que a gente faz estão todas justificadas, pra que a gente se orgulhe da nossa história. 
Se orgulhe do tombo e daquela cicatriz no joelho que faz lembrar como foi difícil levantar e olhar ao redor e ver que tinha gente rindo.

As pessoas riem.

E  foda-se o riso dos outros quando tem o sorriso certo da gente.
Quando tem a paz e a delícia de uma atitude que a gente queria tanto ter.
O certo é o que é. A gente é o é e só.
Não se tratam de escolhas, se trata de não ter outras opções.

Se trata apenas de ser o que tiver que ser pra gente viver.

Kamila Valente

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O que a gente é.




A gente é gente.

A gente é corpo. Todos cagamos e mijamos.
A gente se olha no espelho, vira de bunda e confere a situação da celulite, que aliás, vai sempre muito bem essa safada. 
A gente deseja o carro novo e foda que o amigo comprou.
A gente olha as fotos do casamento e já se imagina lá na igreja, toda de branco, decide o que teria de lindo e o que não teria de brega na nossa festa.
Assalta a geladeira e forja a dieta quando não tem ninguém olhando.
Mente que está mantendo o ritmo na academia pra quem se envolveu no tal do projeto verão (e está na torcida pela gente), não se decepcionar.

A gente é bom.
Sente dó cachorrinho magrelo que todo dia está na esquina de casa, implorando um pão e carinho.
No sinal, dá moedas pro argentino sujinho (porém gato) que faz malabares.
Faz doação, se envolve em causas (anti)sociais, sai pra rua pra protestar por um amontoado de não-sei-o-quê, avisa que a colega saiu do banheiro da balada com o papel grudado no sapato.

A gente é ruim.
Finge que não vê o idoso entrar no ônibus, já que tem gente mais nova sentada e nem se mexe pra ceder o assento.
Faz que não viu aquele vizinho chato, só pra não interagir.
Visualiza e não responde.
Manda indireta. 
Deseja que ele fique impotente, corno e que ela engorde.

A gente é isso  tudo e se suja todo dia na lama da humanidade.
Baba a saliva dos imperfeitos, feitos de carne, ossos e sentimento.
A gente é essa máquina antiga que ninguém quer trocar, porque tem apego.
Ainda não inventaram nenhuma evolução da gente, porque a gente é o que há de mais evoluído no melhor e no pior.
Nenhuma se espécie se supera tanto, todo dia, em cagar com tudo e aparecer com um choro na garganta pedindo perdão.

Ás vezes cansa ser gente, dá vontade de se esconder, faz ode à preguiça de conviver,  jura que vai se relacionar só com árvores, ter um cachorro ou  até ser um, pra justificar tanta cachorrada e amar aquela cadela, quem sabe.
Mas ainda bem que isso passa e o telefone logo toca com uma porção de gentes legais te chamando pra tomar umas.

Ainda bem que a gente muda de ideia toda hora.
Ainda bem que Deus se faz de surdo e ri da gente.

Ainda bem que a gente é gente.

Kamila V.